Valentina Gil: uma força feminina no kartismo gaúcho
Passo-fundense de 15 anos é uma das 61 kartistas filiadas à CBA e mostra que lugar de mulher é, realmente, onde ela quiser
Menos de 3%. Esta reportagem poderia ser uma análise da série homônima da Netflix, mas é uma realidade do kartismo brasileiro. Das 2.113 filiações de kartistas na Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA), em dados de setembro, apenas 61 são femininas. Isso representa exatos 2,89% do total de mulheres no kart nacional. E a gaúcha Valentina Gil é uma dessas representantes.
Hoje com 15 anos, a passo-fundense começou sua trajetória na modalidade muito antes, aos sete. “Foi amor à primeira vista”, conta Rubian Gil, pai da pilota. “Passamos no kartódromo de Passo Fundo (na região Norte do Estado) e a Valentina pediu para ver os karts”, complementa. Primeiro, foram apenas olhar. Em seguida, o pedido para andar – que ficou para outro dia. “A partir disso, nunca mais parou.”
Entretanto, Rubian não conta a história toda. “Desde sempre, o automobilismo esteve presente na minha vida”, diz Valentina, que hoje compete na categoria F4 Graduados. Seu pai e sua mãe competiam de rally: ele era piloto e ela a navegadora. “Cresci ouvindo histórias e admirando os troféus deles, e isso despertou minha vontade de viver essa experiência por conta própria.”
Assim, fica fácil entender o que a levou a pedir para conhecer o kartódromo local. Como ela mesmo ressalta, foi “a maneira perfeita de honrar essa herança familiar” e sentir a mesma emoção que os pais sempre sentiram na pista.
Porém, assim como no rally, essa trilha da pilota Valentina e (por assim dizer) o “navegador” Rubian teve e ainda tem muitos obstáculos a serem superados.
Desafio 1: o machismo
Vivemos em uma sociedade machista. Por mais conquistas que as mulheres tiveram nas últimas décadas, ainda estão muito aquém do necessário. Segundo o Censo Demográfico do Brasil de 2022, as mulheres representam 51,48% da população brasileira.
Entretanto, recebem 20,7% a menos que os homens, exercendo a mesma função, conforme o 2º Relatório de Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios. Além disso, um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta que as mulheres estudam mais, mas menos de 40% ocupa cargos de liderança.
Trazendo para o nosso meio, a diferença é gritante. Basta fazermos um exercício de reflexão: quantas mulheres vemos nos autódromos e kartódromos pelo Brasil? Dessas, quantas são pilotas, mecânicas, chefes de equipe, ou alguma outra função de liderança? Pouquíssimas.
Com Valentina, não foi diferente. Com a ampla maioria dos competidores sendo meninos, pai e filha sabiam que encontrariam algum tipo de preconceito. “Foi assim na primeira prova: alguns meninos perguntavam o que ela estava fazendo lá e a deixavam de canto”, relembra Rubian.
Por mais que a situação tenha melhorado, ele ainda vê um “tratamento diferente” quando a bandeira verde é agitada. “Eles tentam intimidá-la, forçando ultrapassagens”, conta o pai, recordando que, em várias situações, Valentina foi jogada para fora da pista de propósito.
A própria pilota conta alguns momentos. Por exemplo, na segunda etapa do Campeonato Gaúcho desta temporada, experienciou um “episódio bastante desagradável”. Ela não se estende sobre o assunto, mas sabe-se que um adversário a agrediu verbalmente após um incidente de corrida.
Não são apenas os ataques verbais. Às vezes, também, existem aqueles silenciosos, como olhares intimidatórios aqui e ali. “Mas isso nunca me desanimou. Esses momentos me fortaleceram e me incentivaram a provar que mereço estar ali, competindo em igualdade com os demais.”
E isso fez toda a diferença. A pilota e seu pai reforçam que, durante essa caminhada, encontraram muita gente que apoia a presença feminina e que a tratam como amiga.
Desafio 2: suporte financeiro
O automobilismo é um esporte que exige um grande aporte financeiro. No kartismo, não seria diferente. Só um chassi novo de kart não sai por menos de R$ 20.000,00. Isso sem contar os custos de uma prova, como inscrição, pneus, combustível, mecânico, deslocamento, alimentação, estadia. Ou seja, mais que habilidade e força de vontade, precisa muita desenvoltura para conseguir a verba necessária para fazer um fim de semana de corridas.
“Para que a Valentina possa competir, já realizamos rifas e eventos para conseguir os recursos”, admite Rubian. Só nesse 2024, foram duas rifas – uma delas para que pudesse competir as duas últimas etapas do Gaúcho de Kart, realizadas no Kartódromo Techspeed Serra, em Farroupilha.
Ao mesmo tempo, a kartista contou com apoio de amigos e familiares, como a avó paterna. Porém, uma perda irreparável a fez não competir a primeira etapa da temporada, em Vacaria, na região Norte do Rio Grande do Sul. Seu bisavô paterno, um dos grandes incentivadores, faleceu em abril e a deixou muito abalada.
Entretanto, nada disso a faz desistir. Inclusive, o esporte tem muito mais importância na sua vida do que apenas competir.
Mais que esporte: uma lição de vida
Todo esse tempo nas pistas gaúchas contribuíram para além do desenvolvimento como esportista. “O kartismo me ajudou a desenvolver resiliência, disciplina e confiança”, comenta Valentina. “A cada treino ou corrida, enfrento desafios que me obrigam a melhorar e aprender com os erros”, complementa.
Para ela, todos esses desafios a evoluem como atleta e fortalecem o seu caráter, a ajudando a lidar com as frustrações e a celebrar as vitórias com humildade. Porém, sentar em seu kart Techspeed preparado pela equipe Tile Racing não é seu único esporte preferido.
A aluna do 9º ano do Ensino Fundamental também é uma praticante assídua do vôlei, que também faz parte de sua vida desde muito nova. “Me traz muita alegria e descontração”, diz ela. Mas, não apenas isso. “O vôlei exige bastante foco e agilidade, qualidades que também ajudam muito no kart”.
Ou seja, mesmo que de maneira inconsciente, tudo na vida dessa guria leva para as pistas.
Os planos para 2025
As competições de kart próprio deste ano ainda não encerraram totalmente no Rio Grande do Sul. Porém, para Valentina e Rubian, o foco agora é na próxima temporada.
A ideia é continuar com treinamentos fortes e participar de mais competições, tanto no Estado quanto em outras regiões do país. “A intenção é aumentar a visibilidade e ganhar mais experiência em diferentes pistas e condições”, ressalta Valentina, sempre pensando na melhora de seu desempenho e em mais resultados para a equipe.
Rubian lembra que já foram para algumas provas em Santa Catarina e em São Paulo, e pretendem fazer isso novamente. Para isso, o foco agora está em conseguir patrocínios que possibilitem a participação em competições de mais visibilidade. “A ideia é voltar a ‘andar fora’ e ter mais visibilidade, sim. Isso é muito importante para a continuidade dela no esporte.”
E Valentina e Rubian sabem que não estão sozinho. Como fazem questão de reforçar, sempre tiveram pessoas prontas para ajudar, como a Guerton Academia e a B&M Escola de Vôlei, suas patrocinadoras.
O que ambos fazem, também, é ressaltar o apoio da Techspeed, por meio de Rogério Naspolini, proprietário da empresa, e Teobaldo “Neco” Becker, o consultor técnico. “Eles nos abriram as portas e acreditaram na Valentina, pois, na nossa caminhada, muitas portas se fecharam pelo simples fato de ser menina.”