Schumacher: um vilão criado pela imprensa
Já percebeu como a história adora ter “mocinhos” e “vilões”? Branca de Neve e Rainha Malvada; Harry Potter e Voldemort; Democracia e Totalitarismo; e por aí vai. Neste texto, vou falar um pouco sobre como a imprensa criou uma vilania em cima de um dos maiores pilotos de todos os tempos: Michael Schumacher.
Entretanto, essa tarefa não é simples. Antes de tudo, precisamos reconhecer que já tivemos outros casos de “vilão e mocinho” no automobilismo. Em muitos casos, foram criações da própria imprensa. Isso porque, muitas vezes, os veículos de comunicação necessitam dessa polarização para vender o produto chamado Fórmula 1.
Dessa forma, apresento apenas alguns exemplos em diversas categorias ao redor do mundo.
- Alain Prost e Ayrton Senna
- James Hunt e Niki Lauda
- Fernando Alonso e Felipe Massa
- Ayrton Senna e Michael Schumacher
- Chase Elliot e Kevin Harvick
- Kyle Busch e Joey Logano
- Ferrari e Estratégias
- Nikita Mazepin e Habilidade
Desde o início de que o mundo é assim (sim, estou evocando a música “Eu nasci há dez mil anos atrás”). Nós apenas damos continuidade a ele.
Brasil x Alemanha
Esqueçamos os 7×1 na Copa do Mundo de 2014 e voltemos para 21 anos antes desse vexame. Em 1991, um alemão chamado Michael Schumacher fazia sua estreia na Fórmula 1 pela extinta (e saudosa) Jordan.
No ano seguinte, fora contratado pela Benetton para substituir Roberto Moreno. Foi o necessário para que Galvão Bueno soltasse essas palavras durante a transmissão de uma prova de Fórmula 1.
“A corrida acabando para Michael Schumacher, ó! Fizeram (dirigentes da Benetton) a decisão deles. O inglês Tom Walkinshaw, mais o Briatore, evidentemente tudo avalizado pelo Luciano Benetton, que chegou hoje, para assistir a corrida e fizeram a opção.
Não quiseram mais o Piquet e o Moreno.
Olha, com o Schumacher e com o Brundle, eles vão gastar dinheiro, viu? Eles vão gastar dinheiro na próxima temporada. Porque o que eles batem não é fácil.
O que eles estouram de motor…” — Galvão Bueno, em 1992
Transcrevi todo o trecho dessa fala para mostrar como, ali, se criava o mito de que Michael Schumacher, o alemão que tirou os brasileiros da Fórmula 1 por um conluio dos maquiavélicos gestores da Benetton.
Vilania eterna para Schumacher?
Ler esse texto do blog Elas Racing, sobre o documentário “Schumacher” que saiu do catálogo da Netflix, me trouxe essa memória. Quem assistiu à produção, viu um outro alemão.
Um cara obstinado pela vitória, sim, ao ponto de criar uma certa antipatia por parte de Ayrton Senna.
“Acho que o Schumacher, como tantos outros jovens, tem sede de vencer, mas talvez não tenha uma estrutura suficiente para administrar o sucesso tão cedo. Ele é competitivo e está tendo sucesso.
Só que essa falta de estrutura acaba trazendo uma série de situações indesejáveis… no relacionamento com as pessoas, pô! Não é só comigo. Isso tem sido uma constante para ele.” — Ayrton Senna
Segundo o eterno herói brasileiro, o alemão não era visto com simpatia dentro da Fórmula 1. “Ele é visto como muito estrela. O cara venceu dois grandes prêmios na vida até hoje, nada mais, e se acha um campeão do mundo, alguma coisa assim…”
E essas falas, junto com a falta de um herói nacional na categoria depois da morte do Senna, só fez criar mais antipatia pelo alemão.
A semiótica explica
Defendi o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em jornalismo em dezembro de 2008. O tema era a criação de mitos pela imprensa e a semiótica foi muito presente em toda a minha monografia.
O livro “O Poder do Mito”, do Joseph Campbell, também me ajudou a compreender essa necessidade da humanidade em ter seres mitológicos para seguir a vida.
Essa lógica vale para a imprensa também. Já vi, li e ouvi muitos relatos de pessoas que deixaram de assistir à Fórmula 1 depois da morte do Senna.
Isso gera um efeito cascata.
Com menor audiência, a verba publicidade também cai. Dessa forma, há menos espaço para a exposição dos patrocinadores. O resultado você conhece: a cobertura para outras categorias também sofre um grande impacto negativo.
Não à toa que, tão logo o Brasil se recuperou do luto, Rubens Barrichello foi alçado ao “cargo” de substituto do Senna e futuro campeão.
E, depois da corrida da Áustria em 2002, a imagem de Schumacher como um vilão malévolo que não gosta de brasileiros cresceu — e muito -, ao ponto de muitos negarem a sua importância na história da categoria.
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Por que aceitamos esse mito negativo sobre Schumacher?
A resposta é simples. Porque precisávamos colocar a culpa em alguém.
Não importava se Barrichello tivesse, talvez, feito uma escolha errada, ao não aceitar correr pela McLaren. Por duas vezes, aliás.
Sem contar o período ruim, esportivamente falando, entre os anos de 1994 e 2000. Vencemos a Copa do Mundo daquele ano, mas perdemos em 1998.
(Tivemos um “lapso” de sorriso quando Gustavo Kuerten, o Guga, se tornou o primeiro brasileiro a vencer em Roland Garros, em 1997, e em 2000, quando foi o número 1 do mundo no Tênis.)
Ou seja: quando Barrichello assinou com a Ferrari em 1999 para a temporada de 2000, ignoramos o fato de ser companheiro de Schumacher e colocamos o brasileiro como o próximo campeão mundial.
Só que esquecemos um detalhe: Schumacher já estava na equipe desde 1996 e levou parte do seu staff da Benetton junto.
Negar essa ligação entre a equipe e o alemão foi o que nos levou a colocá-lo como inimigo número 1 da nação.
E foi alimentado ainda mais pelo Barrichello, ao dizer essa frase após o GP de Indianápolis de 2005 — quando Schumacher, deliberadamente, “devolveu a vitória” de 2002.
“Sou só um brasileirinho tentando lutar contra esse mundo muito grande. Estou guiando bem o carro, mas tenho que encarar muita coisa que não gosto” — Rubens Barrichello
Schumacher sempre foi um obstinado
Para encerrar, vou repetir o que disse algumas linhas acima. Schumacher era obstinado pela vitória e, por isso, muitos podiam não gostar dele.
Porém, está longe de ser um vilão. Assim como Senna, Prost, Hamilton, Verstappen e Fangio, o alemão está no rol dos pilotos mais geniais de todos os tempos.
Negar isso é negar a própria história da Fórmula 1 e os feitos dos nossos ídolos.